quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O dia em que o Farruco morreu

Farruco era um gatinho preto com uma orelha branca e uma mancha da mesma cor que se lhe estendia ao longo do dorso. Esta descaía-lhe para o lado direito como que a fazer contrapeso com a outra que, além de lhe ocupar toda a face esquerda, fazia com que a orelha desse lado parecesse maior e mais atenta.
Aparecera lá em casa trazido por um dos meus seis irmãos que tinha por animais abandonados uma incompreensível atitude de protecção, desinteressando-se, depois, por criar com eles qualquer relação de afecto, e até mesmo demitindo-se de participar na prestação dos cuidados que tais aquisições implicavam. Levava para casa tudo quanto fosse cão e gato que encontrasse abandonado e depois esperava passivamente que fossem os irmãos a cuidar deles. Além disso, indignava-se claramente quando não via nas pessoas que o rodeavam essa atitude de protecção e amor pelos animais ditos doméstico, que ele acreditava existirem unicamente como sendo um prolongamento daquilo que de animal irracional há em cada um de nós, fazendo sobressair tudo quanto nos caracteriza como seres superiores e, verdadeiramente, nos distingue dessas criaturas.
Os meus pais, habituados que foram à presença de animais domésticos, devido à sua ascendência rural, pouco se importavam com as frequentes aparições de cães e gatos, lá por casa, desde que isso não viesse alterar muito a ordem familiar estabelecida. Na altura, tinha eu dez anos de idade e era o segundo de sete irmãos, fazendo uma diferença de três anos do primeiro, ou seja, do mesmo que foi responsável pelo aparecimento do Farruco. Todos os outros eram mais novos, havendo apenas um ano de diferença entra cada um.
Tinha eu acabado de chegar da escola quando vejo o meu irmão mais velho com um gatinho preto, de aspecto remelado, ar bastante assustado e a querer trepar-lhe pelo braço direito acima.
- Olha este gatinho que encontrei, perdido da mãe, a sair de um silvado, ali na “quelha da paninha”. Disse ele, esperando ver em mim uma inabalável reacção positiva e favorável ao acolhimento desta ternura de animal, que parecia mais assustado do que uma presa na presença do seu predador, pressentindo um final breve e terrível para a sua existência.
- Temos que lhe dar um nome!... Exclamei, ao mesmo tempo que procurava na sua frágil fisionomia algo que me inspirasse na procura da palavra que servisse para o baptizar e lhe assentasse tão bem como a mim um pijama que tinha recebido de prenda de anos algum tempo antes. Lembrei-me então de uma vizinha que em tempos teve um gato chamado Farruco que desapareceu num dia frio de Janeiro depois de ter andado a arrastar a asa a uma fêmea vadia que deambulava pelo quarteirão e que a partir daí, tal como o Farruco, ninguém mais lhe pôs a vista em cima.
Na minha inocência de criança sabia muito pouco acerca da sexualidade em geral e da dos gatos em particular. Sabia apenas, por ouvir dizer, que o mês de Janeiro era o mês dos gatos e que eles saíam de casa para procurarem parceira. De modo que, nem sequer me passou pela cabeça, como hoje admito, que aquele bichano pudesse até ter sido uma consequência e o produto final do desaparecimento do gato da vizinha e da tal gata vadia.
- Podíamos chamar-lhe Farruco. Acrescentei eu com a mesma felicidade de quem acaba de ter uma ideia brilhante ou de fazer uma descoberta de grande vulto.
- Boa!... Vai chamar-se Farruco. Vai ter o mesmo nome que tinha o gato da Dona Fulgência. Concluiu o meu irmão numa das raras ocasiões em que esteve de acordo comigo em toda a sua vida. E assim passou a chamar-se Farruco, tendo este nome colhido ainda a aprovação do resto da comunidade familiar.
- Já tem nome, agora vamos dar-lhe um banho. Acrescentou.
De repente senti um arrepio que me atravessou de cima a baixo. Saltou-me à memória aquela ocasião em que fiquei todo arranhado pelas unhas afiadas de um gato que tivemos e que morreu por ter sido atropelado por uma motorizada. Um certo dia, ao tentar dar-lhe banho, deixou-me no braço direito uma herança que se me grudou na pele, para sempre, como uma tatuagem patriótica feita durante a guerra do Ultramar. Achei por isso mais prudente sugerir que lhe déssemos banho com um pano húmido, não fosse o bicho ter uma dessas investidas que tivesse como resultado uma segunda edição desse momento trágico de que fui vítima e acabo de descrever. Assim fizemos e lá ficou com melhor aspecto, embora de pêlo menos volumoso pela humidade que, após sucessivas esfregadelas, acabou por adquirir.
Não foi nada fácil a adaptação do bichano Farruco no seio desta comunidade de humanos de nove pessoas. Inicialmente, sempre que o colocávamos no chão, escondia-se de imediato debaixo dos móveis, recusando-se a sair, só acedendo a esse propósito quando via aproximar-se dele o cabo de uma vassoura que, em último caso, aparecia para lhe dar uma ajudinha. Ao fim de uma semana começava a familiarizar-se com os cantos da casa, a aprender a conviver com os apertões que os meus irmãos mais novos lhe davam e a brincar com tudo o que mexesse e lhe aparecesse pela frente. Começava também a procurar o caixote onde lhe explicamos, por várias vezes, com uma palmada, que deveria fazer as suas necessidades fisiológicas. À medida que se tornou sociável e desinibido começou também a ter hábitos alimentares pouco vulgares para um felino. Recordo-me, por exemplo, de dar com ele a comer azeitonas deixando apenas os caroços, ficando estes tão limpos como se tivessem sido esfregados com um esfregão de palha-de-aço. Após se deliciar com tão preferido petisco, utilizava os caroços das azeitonas para jogar à bola, deixando-os depois espalhados por toda a casa. Outro alimento predilecto, que estranhamente fazia parte dos seus hábitos gastronómicos, era rodelas de tomate que a minha mãe lhe dava de cada vez que preparava uma salada para o almoço. Quando ela se preparava para cortar tomate era vê-lo a roçar-se-lhe em torno das pernas, só parando quando via cair-lhe no prato uma suculenta rodela deste legume, que começava por lamber antes de trincar. Fora estes estranhos hábitos, comia tudo aquilo de que um normal gato gostava.
Aos poucos foi também tomando certas liberdades. De todas elas, a que mais se atrevia, e que acabou por determinar a sua curta existência, era apanhar-nos a dormir, saltar-nos para a cama, furar por entre os lençóis e enroscar-se muito chegadinho a nós enquanto dormíamos.
Começava a criar com o bichano Farruco um afecto que até aí não tinha conseguido ter por animal nenhum, e ele sentia-o, retribuindo com um rosnar de felicidade que só estes animais conseguem transmitir. Sempre que me sentava a ver televisão lá vinha ele com a sua cauda entesada roçar-se-me à ilharga, olhando-me cabisbaixo, ficando depois à espera de ver a minha mão estender-se na sua direcção com o intuito de lhe fazer uma carícia. E aí ficava, acomodando-se muito quietinho com o seu rosnar terno e agradecido. Quando me portava mal e a minha mãe me castigava, abraçava-me a ele a chorar e sentia que naquele momento só ele se compadecia do meu infortúnio. Falávamos um com o outro apenas com o olhar de criança que ambos éramos e isso nos bastava. Tudo o resto, à minha volta, se traduzia em vivências hostis, pois havia entre mim e os meus irmãos formas de relacionamento bastante conflituosas, acabando eu por ser o bombo da festa nas quezílias entre nós e nas quais a minha mãe acabava por intervir em meu desfavor. Tinha, por isso, o Farruco como o meu maior e melhor amigo. Ele não me contrariava, não me chamava nomes, não me batia e estava sempre ali receptivo a um desabafo meu, ou pronto a transmitir-me amizade quando tudo parecia ruir-me em cima. Esta relação bonita e desinteressada transformou-se na recordação mais grata e viva que tenho dos meus tempos de criança. Talvez parte da dimensão de afectos que hoje constitui os traços da minha personalidade tenha nascido dessa vivência remota e marcante da minha infância.
Um dia, acabando de acordar, senti por baixo de mim uma coisa dura que de imediato associei a um dos meus brinquedos favoritos com que costumava adormecer, julgando tratar-se, portanto, de uma peça de "legos" com que habitualmente costumava brincar. Quando me levantei não queria acreditar no que estava ver. Não!... Não podia ser!... O que eu estava a ver ali era o Farruco espalmado como uma tábua que tinha acabado de sair de uma prensa. Passei dias a tentar perceber como foi possível que o meu melhor amigo me deixasse desta maneira, culpando-me ao mesmo tempo por o ter cilindrado sem ter dado conta e sem que ele tivesse qualquer hipótese de o impedir. Hoje não sou capaz de quantificar o quanto me marcou essa passagem da minha vida. No entanto, de uma coisa tenho a certeza! O dia em que perdi o melhor amigo da minha infância foi o dia em que o Farruco morreu.

Albino Dias

2 comentários:

joana.s.osorio disse...

Os animais de estimação podem ser grandes amigos e por vezes os únicos e este texto demonstra isso mesmo.
;)

Anónimo disse...

Os nossos primeiros amigos são mais marcantes, todo o pioneiro marca-nos de uma forma pessoal e diferente de todos os que se lhe seguem

(: