sábado, 11 de outubro de 2008

O primeiro impacto

Tinha acabado de chegar. Na cabeça trazia, ainda, o ruído do motor da camioneta que ao longo de muitos quilómetros me viera a martelar os ouvidos. O calor era abrasador e a cidade de Évora, para mim desconhecida, entrava-me ostensivamente pelo olhar, com a sua alva e histórica arquitectura, à medida que ia caminhando pela calçada acima (feita de pedra irregular, gasta e polida pelo tempo) na direcção do centro. Era professor provisório e tinha acabado de viajar desde Vila Nova de Gaia a fim de me apresentar na Escola Secundária Gabriel Pereira, onde iria, ao longo dos dois anos seguintes, realizar a “Profissionalização em Exercício”, que seria o ponto de partida para a minha estabilidade profissional a curto prazo. Pelo menos era nisso que acreditava e, por essa estabilidade, me tinha sujeitado a viajar para esta região do Alentejo, onde iria trabalhar e viver durante dois anos seguidos. Durante a viagem, após longas horas, já em pleno coração alentejano, assaltaram-me ao pensamento várias reflexões e interrogações a que só o tempo poderia vir a dar resposta. A paisagem árida e seca desta região levou-me a questionar, por exemplo, a teoria da criação, segundo a qual Deus criou o mundo durante seis dias e descansou ao sétimo. Não podia estar mais em desacordo com tal teoria de cada vez que observava a paisagem árida e seca da planície, que se estendia até perder de vista. Parecia-me mais coerente que Deus tivesse criado o mundo durante seis dias e ao sétimo, já cansado e com falta de ideias, tivesse criado o Alentejo. Só assim eu poderia compreender que houvesse tanta imperfeição em tudo o que via diante dos meus olhos. As árvores muito espaçadas e atarracadas, o terreno agreste, ondulado e despojado de belezas naturais. A abraçar todo este cenário havia um céu de um azul tão intenso e brilhante que até incomodava.
Caminhava, agora, ao longo da Praça do Geraldo, protegido, pelas arcadas, do sol escaldante que se fazia sentir. Precisava de fumar. Deitei a mão ao bolso, mas depressa me lembrei que tinha fumado o último cigarro em Coimbra, durante uma breve paragem no percurso. – Onde se poderá comprar tabaco nesta terra?... Perguntava eu a mim próprio à medida que ia caminhando, transportando uma pesada mala de viagem. Era Domingo e, por esse motivo, não se encontravam estabelecimentos comerciais abertos. Só precisava de encontrar um café, mas nem isso parecia existir nesta cidade que me era tão estranha. O primeiro café que surge no meu trajecto, o café “Arcada”, estava fechado, não por ser Domingo mas por ter sido encerrado há quase um ano. Decidi, então, perguntar a um velho que passava se havia por ali perto um café que estivesse aberto. Informou-me que na direcção em que eu seguia iria encontrar, 500 m à frente, o café “Portugal”. Esta informação acalmou a minha ansiedade. Apressei o passo e 3 minutos depois lá encontrei finalmente um café aberto, o tal café “Portugal”, uma preciosidade da arquitectura de outros tempos. A julgar pela fachada seria, tal como o café “Arcada”, um café centenário por onde já teriam passado as últimas gerações da cidade. Apressei-me na direcção do balcão, pousei a mala e, sem apreciar os detalhes da belíssima arquitectura interior, pedi ao primeiro empregado que encontrei:
– Por favor , dê-me um “SG Ventil”!...
– Ná temos “SG Ventil”, respondeu-me o empregado, de forma seca, sem me olhar de frente e numa pronúncia que para mim nada tinha de familiar.
– Pode ser, então, um “SG Filtro”, disse-lhe eu na expectativa de ser atendido.
– Ná temos “SG Filtro”.
– Então dê-me um Ritz, por favor! Pedi, já um pouco impaciente
– Ná temos “Ritz”, respondeu no mesmo estilo.
– Então que marca de tabaco têm? Perguntei, estranhando a sequência de respostas negativas.
– Ná temos tabaco, amigo! E ao dizer isto olhava-me agora nos olhos com a convicção de quem me tinha acabado de esclarecer de forma definitiva.
Naquele momento fiquei bloqueado por um curto instante, que me pareceu uma eternidade e, sem ter sido capaz de ter tido qualquer reacção, saí apressado como quem tinha acabado de ter um encontro indesejado. Lembro-me de ainda lhe ter dito um “obrigado” que balbuciei instintivamente. Minutos depois, continuando o meu trajecto na procura de outro café, interrogava-me se aquele empregado teria estado a gozar com a minha cara ou se a forma como me atendeu fazia parte da sua própria maneira de ser. A verificar-se esta última hipótese teria que começar a admitir que era muito estranha a forma de ser dos alentejanos. Que era um povo pouco simpático, nos primeiros contactos, para quem chega de fora, já me tinha constado. Agora que, para além disso, manifestasse comportamentos deste estilo, e que poderiam ser até interpretados da pior maneira, era algo que me baralhava e que eu precisava de decifrar nos próximos tempos. Por fim lá encontrei uma taberna, num lugar chamado “jardim das Canas”, mesmo em frente ao Teatro Garcia de Resende, onde pude finalmente comprar tabaco.
Agora sentado num banco do jardim, com a pesada mala ao meu lado, a fumar calmamente aquele cigarro que já há muito tempo desejava, dava conta de quanto tudo era estranho para mim naquela cidade. Não sabia o que me iria ainda esperar nessa tarde de Setembro que ainda ia a meio, a única coisa que sabia é que teria que ir procurar o nº 22 da Rua de Aviz, onde iria ficar hospedado, numa casa particular da qual me tinham dado muito boas referências.

Albino Dias

2 comentários:

Anónimo disse...

Se o Poeta afirma... "a poesia é para comer", a prosa do Albino soube-me bem!Não contava com pasto tão substancial a esta hora. E recordei Florbela! Talvez tenhas encontrado por lá "a moça mais linda do povoado"!... Que destino!

Anónimo disse...

Um de comboio (Alberto Soares), outro de camioneta (Albino Dias). Ambos à descoberta de uma cidade e à procura de um sentido para a vida.
Como é agradável (sempre!) recordar Évora...