terça-feira, 19 de agosto de 2008

Dignidade exemplar

O jornal Expresso de sábado, 15 de Agosto, deu a conhecer um caso que necessariamente nos faz reflectir sobre o modo como tratamos a língua e a cultura portuguesa. Seria muito fácil arranjar meios (um computador, para começar) a este homem, para que ele cumpra o seu sonho. Interrogo-me como poderemos nós, cidadãos comuns, fazê-lo?
Não deixando de ser Senegalês, este homem pertence já à pátria da língua portuguesa.
Aqui fica a notícia completa:

Demba, o senegalês apaixonado por Garrett

Expresso Edição 1868 de 15.08.2008

Veio recolher informação sobre Almeida Garrett para a tese de mestrado. Vende bugigangas na praia para pagar as fotocópias e poder comer.


À primeira vista parece um entre tantos outros senegaleses que pelas nossas praias caminham vendendo colares, pulseiras e outras bugigangas. Mas não é um senegalês comum. Demba Diabaye disserta sobre Almeida Garrett e a sua obra num português fluente e quase isento de sotaque. E sabe mais da história do nosso país que a maioria dos veraneantes da Costa da Caparica que lhe garantem o sustento temporário.
No alto dos seus 26 anos, Demba revela a sapiência de um estudioso. Chegou a Lisboa há cerca de duas semanas para pesquisar livros e documentação na Faculdade de Letras e na Biblioteca Nacional. Tem em mãos uma tese de mestrado sobre as técnicas narrativas de Almeida Garrett e pretende “explorar a identificação entre o personagem Carlos e o próprio autor”. Também já começa a pensar no doutoramento sobre o romantismo português a que há-de dar seguimento na Universidade de Dakar, onde estuda.
Garrett e o romantismo são “um desafio” pelo qual se apaixonou quando descobriu 'Viagens na Minha Terra' durante a licenciatura em estudos portugueses. “Fiquei fascinado com a narrativa de viagem e com a história das lutas liberais”, conta entusiasmado, abrindo um sorriso branco na tez escura. “Por trás da novela de viagem vem o relato político da época, surgem as personagens que encarnam os liberais e as que encarnam os absolutistas...”, e continua a dissertar sobre a obra pronto a dar-nos uma lição de história do século XIX.
Filho de um professor primário já reformado, Demba foi o único de nove irmãos (entre os 29 e os 3 anos de idade) que teve acesso a estudos superiores. Começou a aprender a língua de Camões aos 15 anos e escolheu-a em detrimento do espanhol, italiano, alemão, russo e árabe. Era a língua “de um povo que descobriu o mundo e de um país com grande influência em África”. Além do dialecto natal ‘wolof’, Demba fala francês (a língua oficial), português e inglês.
Colocou-se sempre entre os melhores alunos da turma e não teve dúvidas em optar pelos estudos portugueses quando terminou o liceu. Durante os três anos da licenciatura obteve uma bolsa de €50 mensais, o que “dava para pagar o quarto na residência universitária, comprar «tickets» de refeição, tabaco e uma camisa de vez em quando”.
A família tem sido o seu grande apoio, sobretudo o irmão que é comerciante de máquinas de costura e em cuja casa vive em Dakar. Aliás, foi este que lhe deu os €500 euros para a passagem de avião de ida e volta marcada para 30 de Setembro.
Há quatro anos, Demba não imaginava que estaria agora a pisar a areia da Caparica. E cita Serafim Ferreira e o seu ‘Mar da Palha’: “Nunca pensei que chegasse aqui como ‘Raimundo naquela tarde de Verão’”.
Para os dois meses de pesquisa em Lisboa encontrou albergue em casa de amigos senegaleses que vivem no Martim Moniz. Sem bolsa e com pouco dinheiro no bolso “tirou-se de apuros” e alinhou na actividade dos amigos imigrantes. Por isso anda na venda ambulante pelas praias da Costa da Caparica sobretudo ao fim-de-semana. “É um mal necessário”, diz. E dá para os gastos durante a semana, entre comida e fotocópias.
A tese será escrita à mão, quando regressar a Dacar: Demba não tem computador nem máquina de escrever. Após as correcções e recomendações do orientador, mandará bater o trabalho à máquina, o que lhe custará 60 cêntimos por página.
Ficar por cá não será uma opção: “Prefiro ser professor no Senegal a ser imigrante com uma vida precária aqui”, sublinha convicto. E acrescenta: “Eu tenho objectivos. Quero ser embaixador da língua portuguesa no meu país e trabalhar lá até chegar ao topo da carreira como professor”.
Findo o mestrado, o jovem senegalês pretende fazer formação pedagógica para dar aulas e depois concretizar o doutoramento. Começará como professor de liceu, mas a sua maior ambição é ser docente de português na Universidade de Dakar. Sempre racional e analítico, lembra que no seu país um “professor primário ganha €300 no início de carreira, mas um professor universitário chega aos €1500”. Também poderá trabalhar como tradutor ou crítico literário. Se concretizar todas estas etapas académicas nos prazos previstos, pensa ter o doutoramento concluído aos 30 anos e depois casar.
Apesar de apaixonado pelo romantismo português do século XIX, Demba está longe de ser um romântico. Como o próprio diz: “Não sou os livros que leio”.
Carla Tomás

Eu tenho objectivos. Quero ser embaixador da língua portuguesa no meu país e trabalhar lá até chegar ao topo da carreira como professor.

Vender na praia é um mal necessário para me tirar de apuros.

Prefiro ser professor no Senegal do que imigrante com uma vida precária.

Fiquei fascinado com a narrativa de viagem de Garrett.

Não sou os livros que leio.

PORTUGUÊS NO SENEGAL
17 mil alunos estudam língua portuguesa nos liceus do Senegal e 700 estudantes frequentam o curso de Português na Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Dakar
Os estudos portugueses foram introduzidos na Universidade de Dakar em 1972 por um refugiado guineense chamado Pinto Bull. Há mais alunos a aprender Português no Senegal do que em França, onde existe uma grande comunidade luso-descendente, afirmou à Lusa José Horta, responsável no Senegal pelo Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões.

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