terça-feira, 5 de agosto de 2008

O Tempo das Cerejas

Férias. É tempo de arrumar velhos papéis.
Nos jornais esquecidos há textos que persistem, apesar do tempo ser um fogo que tudo dissipa.
Aqui fica a crónica de José Manuel dos Santos, para saborear...

Cerejas
8:00 Expresso, Segunda-feira, 14 de Jul de 2008

"Na sombra, a casa emudece. Então, tudo se demora e a gravitação do silêncio convida-nos a pensar o olhar. Vejo os frutos onde a luz persiste e sei que eles são uma forma de verdade, aquela de que Tomás de Aquino falava: a adequação do pensamento à realidade das coisas. Olho-os e o meu pensamento fica contente e firma um acordo com o real. Um acordo sem margem, erro, dúvida ou negação.

Um título muito belo é A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector, e o romance que o recebeu é um dos mais perturbantes da língua portuguesa. Num dos seus últimos poemas, "As Maçãs", escrito no hospital, Eugénio de Andrade diz obliquamente a sua morte próxima, falando do fim do Verão: "Também ele vai morrer, o Verão./ Do verde ao vermelho/ as maçãs ardem sobre a mesa./ Ardem de uma luz sua, mais madura./ E servem-me de espelho." Naquele "também" está o presságio, o agouro, o anúncio do seu próprio fim. No cerco mortal da doença que o vence, a maçã é o último espelho onde a vida se demora e o seu brilho escuro permanece. E Sophia de Mello Breyner diz: "A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada sobre a mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira."

Se a fruta do Outono e do Inverno é resistência e desafio, a da Primavera e do Verão é dádiva e volúpia. Eu olho as nêsperas, os pêssegos, as ameixas, os alperces, os morangos e fico contente, de um contentamento que me faz soletrá-los. Mas são as cerejas que me dizem que a perfeição é visível neste mundo. O seu reinado é curto e tudo nelas existe para ser verdade: forma, cor, tamanho, pele, brilho. Aquela esfera pequena, lisa e luminosa, criada para os dedos e os lábios, é de um vermelho, ora escuro, ora claro, que é sempre um começo. E o seu tempo mede algumas das grandes ilusões e desilusões humanas, fugidias como ele. "Le Temps des Cerises" é uma canção de amor escrita antes da Comuna de Paris, mas a ela para sempre ligada, permanecendo depois como um hino da esquerda francesa, cantada por Juliette Greco, Yves Montand e outros. Quando Mitterrand ganhou as eleições de 10 de Maio de 1981, sob a chuva da renovação que caía na Praça da Bastilha, a multidão tornou próxima essa canção distante. Era o tempo das cerejas que chegava. Quinze anos depois, no tributo prestado na morte do presidente socialista, foi Barbara Hendricks quem a cantou, com uma voz que atravessava a noite. O tempo das cerejas era já passado partido, fogo frio, tédio triste. Até que volte!

Todos os anos, por esta altura do Verão, um amigo meu, que tem cerejas e a generosidade que as dá, enche-me a casa delas. A sua presença dá-me uma alegria instantânea, a da felicidade fugitiva do real. Aparecidas no Verão, mas criadas no frio, o sabor das cerejas vai do doce ao ácido, e a sua aura asiática traz-me a memória de tantos "haiku" que as tiveram como motivo. E lembram-me a natureza-morta de Chardin, em que elas aparecem, minúsculas, nítidas e ardentes; ou o quadro de Cézanne, com cerejas e pêssegos, que anuncia o cubismo. Entre as duas naturezas-mortas passou mais de um século e o olhar foi rodando sobre si mesmo.

A beleza e a fugacidade dos frutos trazem-nos o conselho de Horácio: "carpe diem". Aproveita o tempo, colhendo o dia e a sua brevidade nas cerejas, que têm a cor do nosso sangue mais lento e nos tingem a boca do seu fulgor mais rápido. E, se as palavras são como as cerejas, eu digo as de Eliot sobre o real: "Porque eu sei que o tempo é sempre o tempo/ E que o lugar é sempre e somente o lugar/ E aquilo que é real é-o apenas por um tempo/ É-o apenas num lugar/ Eu alegro-me por as coisas serem o que são."

José Manuel dos Santos
Colunista regular do "Actual"


Jean Siméon Chardin (1699-1789)

Natureza Morta, 1759
Dimensões: 46 cm x 37 cm
Museu Oskar Reinhart, CH

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