terça-feira, 26 de agosto de 2008

Sofia

Policlecto
Dorífero, c. 450-440 a.C.

O nu é uma invenção grega.
No Egipto, na Assíria, na Caldeia, o nu é apenas uma maneira de vestir. Mas o pensamento grego crê na «aletheia», crê no «não-coberto», no «não-oculto», procura o homem não-coberto, nu.
Desde o início o escultor grego, fundamentalmente, coloca-se não em frente do homem vestido com armadura de guerreiro ou vestes de escravo, sacerdote ou príncipe mas em frente da nudez do homem em si. Porque crê que o ser está na «physis» o Grego crê que o ser está no mundo em que estamos. Para o Assírio, para o Egípcio, para o Caldeu, a verdade do ser está num outro mundo, no mundo do sagrado exterior ao universo e oculto. Mas o Grego crê no divino interior ao universo. E neste mundo, no estar, no aparecer, no não-oculto, na «aletheia», que ele busca o ser.
A este mundo em que está o Grego chama “Kosmos”. Mas “Kosmos”, oposto a “Kaos”, não significa apenas mundo, mas mundo ordenado-belo.
Esta ordenação é em si própria criadora e divina: e ao esculpir um corpo o artista grego tenta mostrar a relação do homem com uma ordem que é a íntima estrutura do “Kosmos”, da “physis”, do mundo do qual o homem brota e se ergue.
O corpo humano para o artista grego não é um modelo mas um módulo. E é fenómeno em que o ser se manifesta, emerge e brilha. É ser, estar, aparecer.
Por isso o Cânon de Policleto se liga à filosofia pitagórica. Pois esse Cânon não é uma criação estética. Não se trata de descobrir uma fórmula da beleza para criar beleza pois a beleza não é exterior ao que manifesta. Trata-se de descobrir a lei do corpo humano, lei na qual está presente uma ordem divina. Pois a beleza é descobrimento.
Quando na praia apanhamos uma concha aquilo que tão profundamente nos toca é isto: a forma que temos na mão é uma forma que não podia ser doutra maneira. E como se na concha estivesse escrito o pensamento do universo. Ela é verdadeira­mente o fruto dum Kosmos, o fruto dum mundo ordenado, a palavra que confirma a nossa confiança.
Assim também no corpo humano o artista grego lê a ordem do mundo onde está.
E por isso falar do nu na arte grega é sempre falar da relação do homem com o divino.
Homero diz-nos continuamente que os homens são semelhantes aos deuses e Aristóteles fala nestes termos da condição humana:
“Como os poetas nos recomendam o homem não deve, por­que é homem, pensar apenas nas coisas humanas, nem, porque é mortal, pensar apenas nas coisas mortais: o homem deve, na medida das suas possibilidades, viver uma vida divina.”

Aristóteles “Ética a Nicómaco” (X, 7, 1177 B 30).

Sophia de Mello Breyner Andressen, in O Nu na Antiguidade Clássica

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito interessante esse texto...

Beijo!