domingo, 31 de agosto de 2008

De agosto para setembro

Les Trés Riches Heures du Duc de Berry - Septembre


XXI

Concentro os olhos no mais precário
lugar do teu corpo: morre-se
em agosto com as aves:
de solidão.

Neste instante sou imortal:
tenho os teus braços em redor
do corpo todo:
as areias escaldam: é meio-dia.

Do teu peito avista-se o mar
caindo a prumo:
morre-se em agosto na tua boca:
com as aves.

Eugénio de Andrade, branco no branco


CIDADE

Meti-me por setembro fora, a caminho do
fulgor das maçãs, deixando para trás os
bruscos golfos da tristeza e uma luz de neve
quebrada de vidraça em vidraça.
Contemplava a cidade das pontes pela
última vez, envolvida por lençóis encardidos
e uma névoa que subia do rio para lhe mor-
der o coração de pedra.

Era um burgo pobre, sujo, reles até - mas
gostaria tanto de lhe pôr um diadema na
cabeça.

Eugénio de Andrade, memória doutro rio


Dormindo


Anne-Louis Girodet-Trioson, Psyche Asleep. 1799

sábado, 30 de agosto de 2008

Ana Hatherly


O Pavão Negro, 1999
Acrílico sobre papel feito à mão; 124 x 70,5 cm

AS IMPENSÁVEIS PORTAS DA ILUSÃO

O que é que leva o meu barco
para esta praia
onde um poder esquivo
se contenta
com a ambígua oferta de palavras?

Estamos aqui
no exíguo barco do desejo
exibidos
na frágil singularidade do verbo

Insatisfeitos sempre
aguardamos
que se abram
as impensáveis portas da ilusão


UTOPIAS PRIVADAS

Utopias privadas
as palavras
são micro-horizontes
revelação
de um deserto-oceano
que nos enche
de um vazio sem fundo

Embalados por palavras
escutamos
em imagens-falas
o atrevimento do amor
que nos move
comove
estrangula

Enlouqucidos pela dor
cobrimo-nos com o barro das palavras

AnaHatherly, O Pavão Negro

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Livros, livros, livros...



MATEJ KRÉN, Book Cell
Instalação no Hall do CAMJAP da FCG
[19 Julho 2006 a 29 Abril 2007]

Em BooK Cell, MATEJ KRÉN recorre ao procedimento habitual que usa no seu trabalho, empilhando milhares de livros para assim criar uma construção arquitectónica que nos permite nela penetrar.
Este poço hexagonal é construído com pedras-livros, retirando-lhes deste modo a sua função primeira e usando-os como material da escultura-arquitectura.
O saber nos livros guardado, assim permanece: fechado e inacessível.
Só o acto destrutivo ou de desmantelamento os recuperará para a sua função de leitura.
Entretanto, os livros, trabalhados como matéria escultórica, corporizaram o espírito do lugar que o autor nos construiu: um recinto hexagonal com uma passagem de espelhos paralelos que desmultiplicam ad infinitum o espaço e põem o nosso caminhar na vertigem da queda, no pânico do desatino espacial.

Book Cell reúne edições da Fundação Calouste Gulbenkian ao longo dos seus 50 anos de actividade editorial e vários outros livros do mundo.
Desta forma sai reforçada a natureza site specific do trabalho com a inclusão de objectos (os livros) que representam um pilar basilar da intervenção cultural da Fundação e são metáfora da própria construção do conhecimento.


Matej Krén (1958, Trenčín, Eslováquia)
Vive e trabalha em Praga.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Dias de verão

Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é o nosso corpo

Tempo é de repouso e de festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é o nosso corpo

O destino torna-se próximo de legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo


Sophia de Mello Breyner Andressen

Passeio Amarante 1967


Sofia

Policlecto
Dorífero, c. 450-440 a.C.

O nu é uma invenção grega.
No Egipto, na Assíria, na Caldeia, o nu é apenas uma maneira de vestir. Mas o pensamento grego crê na «aletheia», crê no «não-coberto», no «não-oculto», procura o homem não-coberto, nu.
Desde o início o escultor grego, fundamentalmente, coloca-se não em frente do homem vestido com armadura de guerreiro ou vestes de escravo, sacerdote ou príncipe mas em frente da nudez do homem em si. Porque crê que o ser está na «physis» o Grego crê que o ser está no mundo em que estamos. Para o Assírio, para o Egípcio, para o Caldeu, a verdade do ser está num outro mundo, no mundo do sagrado exterior ao universo e oculto. Mas o Grego crê no divino interior ao universo. E neste mundo, no estar, no aparecer, no não-oculto, na «aletheia», que ele busca o ser.
A este mundo em que está o Grego chama “Kosmos”. Mas “Kosmos”, oposto a “Kaos”, não significa apenas mundo, mas mundo ordenado-belo.
Esta ordenação é em si própria criadora e divina: e ao esculpir um corpo o artista grego tenta mostrar a relação do homem com uma ordem que é a íntima estrutura do “Kosmos”, da “physis”, do mundo do qual o homem brota e se ergue.
O corpo humano para o artista grego não é um modelo mas um módulo. E é fenómeno em que o ser se manifesta, emerge e brilha. É ser, estar, aparecer.
Por isso o Cânon de Policleto se liga à filosofia pitagórica. Pois esse Cânon não é uma criação estética. Não se trata de descobrir uma fórmula da beleza para criar beleza pois a beleza não é exterior ao que manifesta. Trata-se de descobrir a lei do corpo humano, lei na qual está presente uma ordem divina. Pois a beleza é descobrimento.
Quando na praia apanhamos uma concha aquilo que tão profundamente nos toca é isto: a forma que temos na mão é uma forma que não podia ser doutra maneira. E como se na concha estivesse escrito o pensamento do universo. Ela é verdadeira­mente o fruto dum Kosmos, o fruto dum mundo ordenado, a palavra que confirma a nossa confiança.
Assim também no corpo humano o artista grego lê a ordem do mundo onde está.
E por isso falar do nu na arte grega é sempre falar da relação do homem com o divino.
Homero diz-nos continuamente que os homens são semelhantes aos deuses e Aristóteles fala nestes termos da condição humana:
“Como os poetas nos recomendam o homem não deve, por­que é homem, pensar apenas nas coisas humanas, nem, porque é mortal, pensar apenas nas coisas mortais: o homem deve, na medida das suas possibilidades, viver uma vida divina.”

Aristóteles “Ética a Nicómaco” (X, 7, 1177 B 30).

Sophia de Mello Breyner Andressen, in O Nu na Antiguidade Clássica

domingo, 24 de agosto de 2008

Mapas para nos perdermos

Joseph Cornell
Objecto, 1942

MAPA

Ouço-as por dentro de mim, metidas nos cantos da memória,
comendo as madeixas do verso em silêncio; e amo-as, num
sussurro fresco de ser, deixando-as alimentarem-se dos meus
próprios restos - ó respirações hesitantes do sonho, prometidas
ao destino de uma palidez absurda, nuas no dorso das dunas!...
Mas afasto-as da minha vida, no quarto fechado das margens
nocturnas. Os meus dedos tocam-nas na instrumentação dos
sons; sei que as cuspo com o luminoso rasto de uma queda de
estrelas - e, no entanto, não cessa o desejo de uma floração
matinal de lábios!, nem os outonos, presos numa concha de
amêndoa, me recusam o estímulo de mares navegáveis! (Traçai,
então, o contorno preciso das ruínas solares da página).

Nuno Júdice

Depois da ceifa


IDÍLIO

Nos mais profundos leitos feitos de junco fresco
e de folhas de vinha pouco antes cortadas,
alegres nos deitámos. Sobre nossas cabeças
os choupos e os ulmeiros seus ramos agitavam.

De uma gruta, a dois passos, às Ninfas consagrada,
ouvia-se em murmúrios a água que escorria…
E pelo sol crestadas penavam as cigarras,
a sombra procurando nos espinhos das silvas.

Mais ao longe coaxavam ligeiramente as rãs;
pintassilgos cantavam; a rola suspirava;
as abelhas zuniam ao canto das calhandras
seu dourado zumbido sobre a fonte sagrada…

E rescendia a frutos. Sorvia-se o aroma,
em todos esses pomos, do Outono fecundo:
as maçãs e as peras empilhavam-se em montes;
e vergavam-se os ramos, carregados de abrunhos.

Abriu-se então um vinho, cuja cera datava
de quatro anos antes…
- Que sempre me sorria,
terminadas as ceifas, a Deusa das Searas,
com as mãos enfeitadas de papoulas e espigas!

Teócrito [Séc. III a.C.]
Idílios, 7, vv. 132-57
Trad. David Mourão-Ferreira

Vozes da Poesia Europeia - I
Colóquio Letras, número 163

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Dignidade exemplar

O jornal Expresso de sábado, 15 de Agosto, deu a conhecer um caso que necessariamente nos faz reflectir sobre o modo como tratamos a língua e a cultura portuguesa. Seria muito fácil arranjar meios (um computador, para começar) a este homem, para que ele cumpra o seu sonho. Interrogo-me como poderemos nós, cidadãos comuns, fazê-lo?
Não deixando de ser Senegalês, este homem pertence já à pátria da língua portuguesa.
Aqui fica a notícia completa:

Demba, o senegalês apaixonado por Garrett

Expresso Edição 1868 de 15.08.2008

Veio recolher informação sobre Almeida Garrett para a tese de mestrado. Vende bugigangas na praia para pagar as fotocópias e poder comer.


À primeira vista parece um entre tantos outros senegaleses que pelas nossas praias caminham vendendo colares, pulseiras e outras bugigangas. Mas não é um senegalês comum. Demba Diabaye disserta sobre Almeida Garrett e a sua obra num português fluente e quase isento de sotaque. E sabe mais da história do nosso país que a maioria dos veraneantes da Costa da Caparica que lhe garantem o sustento temporário.
No alto dos seus 26 anos, Demba revela a sapiência de um estudioso. Chegou a Lisboa há cerca de duas semanas para pesquisar livros e documentação na Faculdade de Letras e na Biblioteca Nacional. Tem em mãos uma tese de mestrado sobre as técnicas narrativas de Almeida Garrett e pretende “explorar a identificação entre o personagem Carlos e o próprio autor”. Também já começa a pensar no doutoramento sobre o romantismo português a que há-de dar seguimento na Universidade de Dakar, onde estuda.
Garrett e o romantismo são “um desafio” pelo qual se apaixonou quando descobriu 'Viagens na Minha Terra' durante a licenciatura em estudos portugueses. “Fiquei fascinado com a narrativa de viagem e com a história das lutas liberais”, conta entusiasmado, abrindo um sorriso branco na tez escura. “Por trás da novela de viagem vem o relato político da época, surgem as personagens que encarnam os liberais e as que encarnam os absolutistas...”, e continua a dissertar sobre a obra pronto a dar-nos uma lição de história do século XIX.
Filho de um professor primário já reformado, Demba foi o único de nove irmãos (entre os 29 e os 3 anos de idade) que teve acesso a estudos superiores. Começou a aprender a língua de Camões aos 15 anos e escolheu-a em detrimento do espanhol, italiano, alemão, russo e árabe. Era a língua “de um povo que descobriu o mundo e de um país com grande influência em África”. Além do dialecto natal ‘wolof’, Demba fala francês (a língua oficial), português e inglês.
Colocou-se sempre entre os melhores alunos da turma e não teve dúvidas em optar pelos estudos portugueses quando terminou o liceu. Durante os três anos da licenciatura obteve uma bolsa de €50 mensais, o que “dava para pagar o quarto na residência universitária, comprar «tickets» de refeição, tabaco e uma camisa de vez em quando”.
A família tem sido o seu grande apoio, sobretudo o irmão que é comerciante de máquinas de costura e em cuja casa vive em Dakar. Aliás, foi este que lhe deu os €500 euros para a passagem de avião de ida e volta marcada para 30 de Setembro.
Há quatro anos, Demba não imaginava que estaria agora a pisar a areia da Caparica. E cita Serafim Ferreira e o seu ‘Mar da Palha’: “Nunca pensei que chegasse aqui como ‘Raimundo naquela tarde de Verão’”.
Para os dois meses de pesquisa em Lisboa encontrou albergue em casa de amigos senegaleses que vivem no Martim Moniz. Sem bolsa e com pouco dinheiro no bolso “tirou-se de apuros” e alinhou na actividade dos amigos imigrantes. Por isso anda na venda ambulante pelas praias da Costa da Caparica sobretudo ao fim-de-semana. “É um mal necessário”, diz. E dá para os gastos durante a semana, entre comida e fotocópias.
A tese será escrita à mão, quando regressar a Dacar: Demba não tem computador nem máquina de escrever. Após as correcções e recomendações do orientador, mandará bater o trabalho à máquina, o que lhe custará 60 cêntimos por página.
Ficar por cá não será uma opção: “Prefiro ser professor no Senegal a ser imigrante com uma vida precária aqui”, sublinha convicto. E acrescenta: “Eu tenho objectivos. Quero ser embaixador da língua portuguesa no meu país e trabalhar lá até chegar ao topo da carreira como professor”.
Findo o mestrado, o jovem senegalês pretende fazer formação pedagógica para dar aulas e depois concretizar o doutoramento. Começará como professor de liceu, mas a sua maior ambição é ser docente de português na Universidade de Dakar. Sempre racional e analítico, lembra que no seu país um “professor primário ganha €300 no início de carreira, mas um professor universitário chega aos €1500”. Também poderá trabalhar como tradutor ou crítico literário. Se concretizar todas estas etapas académicas nos prazos previstos, pensa ter o doutoramento concluído aos 30 anos e depois casar.
Apesar de apaixonado pelo romantismo português do século XIX, Demba está longe de ser um romântico. Como o próprio diz: “Não sou os livros que leio”.
Carla Tomás

Eu tenho objectivos. Quero ser embaixador da língua portuguesa no meu país e trabalhar lá até chegar ao topo da carreira como professor.

Vender na praia é um mal necessário para me tirar de apuros.

Prefiro ser professor no Senegal do que imigrante com uma vida precária.

Fiquei fascinado com a narrativa de viagem de Garrett.

Não sou os livros que leio.

PORTUGUÊS NO SENEGAL
17 mil alunos estudam língua portuguesa nos liceus do Senegal e 700 estudantes frequentam o curso de Português na Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Dakar
Os estudos portugueses foram introduzidos na Universidade de Dakar em 1972 por um refugiado guineense chamado Pinto Bull. Há mais alunos a aprender Português no Senegal do que em França, onde existe uma grande comunidade luso-descendente, afirmou à Lusa José Horta, responsável no Senegal pelo Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Ventos




Pente dos Ventos, San Sebastian

Eduardo Chillida, arquitecto de vazios e poeta da luz, opera uma síntese entre arquitectura e escultura, duas artes criadoras de espaços tridimensionais. Protagonista duma site-specific sculpture em que o relacionamento das peças com o lugar transformam o espaço envolvente em parte integrante da obra. Não se limita a pôr a obra no espaço mas, ao torná-lo vivenciável, convoca também o próprio espectador, que passa a integrar e a experimentar a trama de tempo e de espaço em que a escultura se transformou.

Mais do que uma arte relacionada com a distribuição de objectos no espaço [Lessing] a escultura contemporânea obriga-nos a falar cada vez mais de tempo, devido aos apelos à consciência que o observador tem do seu próprio tempo ao vivenciar a obra [Krauss]. Daí a implícita experiência temporal que a escultura de Chillida oferece, assegurando deste modo uma forte ligação à poesia.

Chillida usa, pois, o espaço como material primordial, dando-lhe forma através do trabalho sobre a matéria. Processo que, pela subtracção de matéria, define espaço, ao operar cortes, abrir ocos, perfurar. Introduz luz na matéria, carregando a escultura de energia. Uma luz que passa a brotar de dentro da própria escultura. O espaço vazio materializa-se, assim, numa força que complementa a matéria e é tão corporal como ela, desdobrando-se em ritmos de uma música silenciosa.
O vácuo primordial recipiente do universo, o silêncio esperando o som.
Também a luz, material intangível, é usada por Chillida para definir volumes negativos e, como elemento da escultura, torna-se também um componente do tempo, um tempo que nos toca e que não conseguimos agarrar.

Diálogo de opostos, as suas obras materializam o imaterial, provam a existência do vazio através do trabalho da matéria, numa atitude paradoxal e ambivalente. Afirma pela negação, lembrando o vazio interno do vaso, que é a sua razão de ser, e o vazio habitável da casa.
É assim, entre luz e sombra, espaço e tempo, matéria e vazio, que se ergue a arte de Eduardo Chillida.

O Pente dos Ventos, em San Sebastian evoca um lugar arcaico onde a acção artística sobre os elementos da natureza demanda a fusão entre o material e o espiritual, abrindo novos horizontes.
Além da Forma e da Imagem existe também o Som. Esta é, também, uma escultura sonora. Podemos mesmo dizer uma instalação sonora, em que o som se materializa de forma consciente. Incorporado na obra que o produziu participa, também, no discurso plástico.

Chillida projectou, em colaboração com o músico Luis de Pablo, para a superfície da plataforma do Peine de los Vientos, sete perfurações, através das quais o mar, devido à força com que entra por baixo, cria uma pressão no ar que, ao sair por cada um dos sete orifícios, produz sons correspondentes às sete notas musicais.

Formas e sons que amam o longe e a distância fazendo mais um Elogio ao Horizonte, como o que realizou em Gijon, onde Chillida criou um magnificat que põe a imensidão do oceano e do firmamento diante do espectador.
O homem é a medida e vê com o corpo todo. A escultura oferece uma escala, um micro espaço para enfrentar e abraçar o horizonte, o limite do nosso olhar.
A. F. Silva




Elogio ao Horizonte, Gigon

terça-feira, 5 de agosto de 2008

O Tempo das Cerejas

Férias. É tempo de arrumar velhos papéis.
Nos jornais esquecidos há textos que persistem, apesar do tempo ser um fogo que tudo dissipa.
Aqui fica a crónica de José Manuel dos Santos, para saborear...

Cerejas
8:00 Expresso, Segunda-feira, 14 de Jul de 2008

"Na sombra, a casa emudece. Então, tudo se demora e a gravitação do silêncio convida-nos a pensar o olhar. Vejo os frutos onde a luz persiste e sei que eles são uma forma de verdade, aquela de que Tomás de Aquino falava: a adequação do pensamento à realidade das coisas. Olho-os e o meu pensamento fica contente e firma um acordo com o real. Um acordo sem margem, erro, dúvida ou negação.

Um título muito belo é A Maçã no Escuro, de Clarice Lispector, e o romance que o recebeu é um dos mais perturbantes da língua portuguesa. Num dos seus últimos poemas, "As Maçãs", escrito no hospital, Eugénio de Andrade diz obliquamente a sua morte próxima, falando do fim do Verão: "Também ele vai morrer, o Verão./ Do verde ao vermelho/ as maçãs ardem sobre a mesa./ Ardem de uma luz sua, mais madura./ E servem-me de espelho." Naquele "também" está o presságio, o agouro, o anúncio do seu próprio fim. No cerco mortal da doença que o vence, a maçã é o último espelho onde a vida se demora e o seu brilho escuro permanece. E Sophia de Mello Breyner diz: "A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada sobre a mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira."

Se a fruta do Outono e do Inverno é resistência e desafio, a da Primavera e do Verão é dádiva e volúpia. Eu olho as nêsperas, os pêssegos, as ameixas, os alperces, os morangos e fico contente, de um contentamento que me faz soletrá-los. Mas são as cerejas que me dizem que a perfeição é visível neste mundo. O seu reinado é curto e tudo nelas existe para ser verdade: forma, cor, tamanho, pele, brilho. Aquela esfera pequena, lisa e luminosa, criada para os dedos e os lábios, é de um vermelho, ora escuro, ora claro, que é sempre um começo. E o seu tempo mede algumas das grandes ilusões e desilusões humanas, fugidias como ele. "Le Temps des Cerises" é uma canção de amor escrita antes da Comuna de Paris, mas a ela para sempre ligada, permanecendo depois como um hino da esquerda francesa, cantada por Juliette Greco, Yves Montand e outros. Quando Mitterrand ganhou as eleições de 10 de Maio de 1981, sob a chuva da renovação que caía na Praça da Bastilha, a multidão tornou próxima essa canção distante. Era o tempo das cerejas que chegava. Quinze anos depois, no tributo prestado na morte do presidente socialista, foi Barbara Hendricks quem a cantou, com uma voz que atravessava a noite. O tempo das cerejas era já passado partido, fogo frio, tédio triste. Até que volte!

Todos os anos, por esta altura do Verão, um amigo meu, que tem cerejas e a generosidade que as dá, enche-me a casa delas. A sua presença dá-me uma alegria instantânea, a da felicidade fugitiva do real. Aparecidas no Verão, mas criadas no frio, o sabor das cerejas vai do doce ao ácido, e a sua aura asiática traz-me a memória de tantos "haiku" que as tiveram como motivo. E lembram-me a natureza-morta de Chardin, em que elas aparecem, minúsculas, nítidas e ardentes; ou o quadro de Cézanne, com cerejas e pêssegos, que anuncia o cubismo. Entre as duas naturezas-mortas passou mais de um século e o olhar foi rodando sobre si mesmo.

A beleza e a fugacidade dos frutos trazem-nos o conselho de Horácio: "carpe diem". Aproveita o tempo, colhendo o dia e a sua brevidade nas cerejas, que têm a cor do nosso sangue mais lento e nos tingem a boca do seu fulgor mais rápido. E, se as palavras são como as cerejas, eu digo as de Eliot sobre o real: "Porque eu sei que o tempo é sempre o tempo/ E que o lugar é sempre e somente o lugar/ E aquilo que é real é-o apenas por um tempo/ É-o apenas num lugar/ Eu alegro-me por as coisas serem o que são."

José Manuel dos Santos
Colunista regular do "Actual"


Jean Siméon Chardin (1699-1789)

Natureza Morta, 1759
Dimensões: 46 cm x 37 cm
Museu Oskar Reinhart, CH