sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Uma Chávena de Chocolate Quente

A Vida. Nenhuma outra palavra arrasta consigo tanto, embora tão pouco. A Humanidade, como a interpretamos, sempre tentou tornar o processo da Vida – o período no qual se pensa – algo não só significativo, mas estendê-lo ao ponto eterno. Como tal, diversos artistas, cientistas ou alguém puramente especial, encontra ou, como acontece na maioria das vezes, é “encontrado” pela sua obra (como aconteceu a Pessoa com Caeiro), tornando-se o eterno autor, o criador, o Deus do seu universo, o qual reparte a sua alma pela obra e vive, palpitando nas mãos de ávidos leitores, nos olhos de artistas, ou nos ouvidos dos músicos. A única forma de ser eterno é criar a sua própria realidade e nadar nela eternamente, deixando-se rasgar pela corrente de um calmo lago, como um livro que calmamente oferece as suas letras à água.
Como exemplo de realização de uma vida, temos Tchékhov (que vive ainda hoje no papel que escrevo!) e que pôde, no final da sua vida, celebrar a morte com um copo de champanhe. Mas porquê? Um exemplo intrigante da sua forma de pensar pode ser visto/ouvido no teatro: ‘A Gaivota’. Esta peça é uma tragédia, tendo até um desenvolvimento semelhante a ‘Hamlet’, embora o autor a indique como sendo, ironicamente, uma comédia! A comédia da Vida! Nela, várias vidas são representadas de uma maneira que se pode traduzir como um ‘fac simile’ da realidade. É um teatro real, onde vemos a realidade num palco sob luzes brilhantes e, onde o escritor se riu, nós chorámos. Se ao vermos (na peça) o pobre dramaturgo, filho da actriz famosa, incapaz de ter sucesso na vida, desesperado e zangado com o Mundo e sentirmos o mesmo que ele, também nós seremos regulares, mas a visão de Tchékhov é deveras engraçada, e aqui mesmo vemos o contraste: uma pessoa singular, satisfeita com a Vida, satisfeita com a vida que cria através da escrita. Contudo, toda essa ironia é nada mais que um reflexo do processamento da espécie humana. Se há quem se distinga há quem se distinga por não se distinguir; tornando uns mais aptos à imortalidade e à dádiva de alterar o curso do mundo, que pode parecer a quem ainda não a materializou (pois se a considerámos, é matéria) ou, simplesmente, a considerou algo de inteiramente ficcional e “um mero verso solto da realidade, propício a cair nas páginas finas de um livro de poemas, destinado ao degredo das mesas- -de-cabeceira”. Se o dramaturgo se ri, ri-se da morte, pois enganou-a, viverá para sempre na sua obra, andando de mente em mente, como o dente-de-leão primaveril navega no vento à procura de terra.
Mas esses sentidos não se fazem sentir só no teatro… Bernardo Soares, semi-heterónimo de Fernando Pessoa, já escrevia “E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes”. Tal reflexão, vinda de um “heterónimo”, que nunca pode defender as suas teses ou pensamentos, é uma prova dada de que a existência, para além do concreto, existe – que é possível e, para alguns indivíduos, é necessário ascender a estatutos maiores do que o Humano – Bernardo Soares disse-o no ‘ Filme do Desassossego’: “ Deus sou eu!”. E, com cólera, o fragmento regressa ao covil da sua existência, alimentando o Criador num banquete de sapiência construtiva, aproximando-o a uma imagem pré-concebida de perfeição; pois se uma pessoa nunca pode ser ausenta de defeitos, quantos mais entes trabalharem para esse objectivo, menos distante se ficará da ignorância e mais perto da já mencionada imortalidade.
Todas estas personalidades, e até mais, como Cesário Verde e José Saramago, provam tudo o acima afirmado. A obra pode crescer para além do autor literário, o verdadeiro Criador, que move mundos e muda pessoas, transpondo o corpo, exilando-se do enganoso mundo real e assim, somente assim, se pode negar o estatuto de mortal. Só falta cada um de nós encontrar a sua ‘escapatória’ desta ‘bomba relógio’, para que no final possamos todos brindar a morte com uma agradável chávena de chocolate quente!

Gabriel António Monteiro Pinto, 12º E

Sem comentários: