quinta-feira, 10 de março de 2011

“Deixemos o Sexo em Paz”

Texto crítico
No âmbito da Educação Sexual, tive a oportunidade de assistir à peça “Deixemos o Sexo em Paz”, título que é tradução oficial de “Sesso? Grazie, tanto per gradire”, da autoria do dramaturgo italiano Dario Fo. Esta é uma peça que nos remete para as diferentes formas de a sociedade lidar com as questões sexuais procurando estabelecer um nexo de causalidade entre o conservadorismo extremo e alguns dos seríssimos problemas que afectam os adolescentes e jovens, como as gravidezes indesejadas e as doenças sexualmente transmissíveis.
Tendo por público-alvo as camadas mais jovens, normalmente pouco entusiastas do teatro, convém salientar a forma extremamente interessante como a peça se consegue adaptar às especificidades deste tipo de público. Com efeito, e apesar de se tratar de um monólogo, a utilização de um discurso repleto de ironia e humor consegue imprimir um ritmo bastante vivo, captando a atenção do espectador e ajudando a transmitir, de uma forma mais eficiente a mensagem subjacente ao argumento.
A peça retrata as várias facetas das sociedades marcadamente conservadoras, incidindo, em especial, na forma como estas abordam todas as questões ligadas à sexualidade. Procura apontar, de forma bem evidente, padrões comportamentais e culturais típicos de sociedades mais rígidas, levando-nos a compreender o papel da religião no estabelecimento dessa moralidade. Assim, parece-me pertinente este último aspecto, ou seja, a ligação entre sociedades onde a religiosidade é mais vincada e o assumir da sexualidade como assunto tabu. Na verdade, o texto transporta-nos para a sociedade italiana, a partir da qual conseguimos estabelecer uma analogia lógica com o mundo latino, nomeadamente com a sociedade portuguesa, onde, como é sabido, a igreja católica está profundamente enraizada.
Como referido anteriormente, a sociedade portuguesa, encarna, claramente, as questões levantadas pela peça, moldando-se assim durante os tempos, as mentalidades das populações e criando-se padrões de pretensa pureza moral.
A actriz que personifica o monólogo encara durante a peça diversas personagens, assumindo-se, consequentemente como uma personagem tipo que visa representar a sociedade em geral. Surge, por exemplo, como Eva, evocando o papel da mulher numa espécie de degeneração da pureza, apontando-a como fonte do pecado, numa alusão ao machismo dominante em muitas sociedades, que tende a subjugar a mulher e a castrá-la da sua expressão sexual. Encarna, de igual modo, uma mãe italiana que se mostra preocupada com as supostas perversidades do filho, momento que considero particularmente importante e actual. De facto, a mãe mostra-se preocupada mas tende a optar por um caminho punitivo, em detrimento do aconselhamento e de uma discussão aberta. Esta questão mostra-nos um claro afastamento entre pais e filhos no que à educação sexual diz respeito. Os pais, pela forma como não discutem o assunto, criam um clima de constrangimento nos filhos, levando a que estes, mesmo em caso de dúvida ou problema, o guardem para si, ou, inclusivamente, procurem resposta em locais não adequados ou fidedignos.
Esta é uma peça carregada de ironia. Uma peça que procura satirizar a dita sociedade perfeita e normalmente “limpa”, que nos pode rodear. Uma sociedade que prefere evitar, contornar e negligenciar um assunto, a atacá-lo e esclarecê-lo, sem rodeios. Um mundo carregado de pertenças verdades, que, no fundo, não passam de imposições motivadas pela procura de uma suposta pureza moral. Leva-nos a percorrer uma sequência temporal, ajudando-nos a perceber a origem de muitos dos preconceitos que vigoram em relação ao sexo e à educação sexual.
Em jeito de conclusão, assistir a esta peça permite-nos compreender as causas para muitos dos problemas que afectam os jovens em questões ligadas à sexualidade. Há um claro desfasamento entre um cada vez maior acesso à informação (através, sobretudo, dos meios de comunicação) e uma relação mais próxima entre pais e filhos neste domínio. Permite-nos perceber que uma sociedade mais aberta à discussão e ao diálogo seria um mundo melhor. Chegamos à conclusão de que barreiras culturais que a história nos impôs e que urge serem combatidas. E que a erradicação dessas barreiras permitirá aos jovens terem uma relação mais aberta com a educação sexual, evitando males e constrangimentos que prejudicam o seu desenvolvimento harmonioso e saudável.

Crónica
Quarta-feira. Tarde de inverno. Chove na rua. Num ambiente bem iluminado, acolhedor e confortável, assisto pausadamente ao desenrolar de um monólogo.
A actriz remete-nos inicialmente para a interacção entre Adão e Eva. Entramos no mundo da origem do pecado, em que um acto aparentemente inofensivo, se transforma num fio condutor para a degeneração da pureza e da castidade. Somos levados a criar um estigma de culpabilização, atribuindo à mulher uma espécie de papel inconsciente no surgimento do conceito de pecado. E, essa maçã, a tal maçã da origem do pecado, percorre o tempo até aos nossos dias, subalternizando a mulher e retirando-lhe liberdade na sua expressão sexual. Adão acaba por representar o papel do homem incauto e desprevenido, que, qual vítima, é levado, quase à força, a entrar num mundo pecaminoso. Pobre Adão, que simboliza o homem actual, vítima dos encantos e malabarismos da mulher, criminosa na insinuação e responsável pela corrupção moral das sociedades perfeitas.
Seguindo o desenrolar da peça é-nos apresentada, por exemplo, uma jovem e inocente rapariga, grávida de forma precoce, vítima de falta de informação. Acaba por abortar, clandestinamente, em péssimas condições: clara alusão às condicionantes morais e políticas que envolvem a questão do aborto. Em sociedades que se pretendem afirmar como puras e “ limpas”, ignora-se a questão. É viver numa sociedade que faz, mas esconde o que faz, mas critica quem o faz e diz que faz. Sejamos favoráveis ao aborto, mas sejamos conscientes. Sejamos contrários, mas sejamos coerentes.
Segue-se o encarnar numa professora francesa que ensina às mulheres a entrarem num mundo de mentira, treinando-as para, pela falsidade, a agradarem aos maridos. É o currículo da mulher perfeita! A sociedade subalterniza a mulher, confere-lhe um papel submisso. Há que agradar ao homem! É o retrato de um mundo que insiste na desvalorização da felicidade e na realização da mulher. Essa felicidade é, seguramente, factor secundário, sem importância alguma. Importa sim alimentar o ego masculino e servi-lo, viver para os seus anseios e necessidades. No fundo, este é um mundo de Adões e Evas… De Adões que precisam de toda a atenção e de Evas que nasceram para os servir.
Somos, em seguida, transportados até ao mundo de uma mãe italiana que se apercebe das imensas dúvidas que assolam o filho, relativamente a questões ligadas à sexualidade. A mãe vive numa angústia constante, receando que o filho possa, graças à falta de informação, engravidar uma rapariga católica. Perfeitamente visível o papel fundamental que a Igreja Católica assume na formação das mentalidades. Perfeitamente visível o estigma da culpabilização. Que o filho engravidar uma jovem católica constituiria um atentado ao puritanismo social, ou seja, um dos mais graves pecados. Curiosa perspectiva esta, que leva a que pais temam muito mais as consequências do desconhecimento sexual dos filhos, do que esse desconhecimento propriamente dito. Estranho mundo este em que os comportamentos se tornam graves mediante a forma como são vistos e encarados pelos outros. Estranho mundo este em que se ignora a questão essencial e se vive angustiado pela procura do silêncio e da dissimulação.
Contudo, como uma rajada de ar fresco, de inovação, de modernismo de abertura, surge uma rapariga, cuja tia lhe transmite ensinamentos valiosos em relação à sexualidade. Ponto de viragem, de coragem. Entramos no mundo que se pretende real, no mundo em que se entende a importância da sexualidade e a necessidade de se falar dela. No mundo em que surgirá a abertura entre pais e filhos, para que as dúvidas sejam esclarecidas. No mundo em que a saúde e a planificação sexual se sobrepõem aos constrangimentos ditados por séculos de obscurantismo e de falsos moralismos. O papel da família é, seguramente o de educar. E torna-se urgente que o conceito de educação abranja todas as facetas que contribuem para o desenvolvimento correcto e harmonioso dos adolescentes e jovens. E aquela tia, aberta e disposta a esclarecer a sobrinha, representa isso mesmo: um virar de página, em que a verdade e a natureza da vida são assumidas na sua plenitude.
Em jeito de conclusão, somos confrontados com um discurso de mudança. Do palco, são-nos lançadas palavras que incentivam à procura do conhecimento e da verdade. Do palco é-nos lançado o repto para que, nós próprios, possamos assumir um papel de mudança no tratamento das questões ligadas à sexualidade. Porque a inocência só é inocência quando temos consciência dela. Porque a inocência como sinónimo de ignorância é um mal que corrompe o nosso desenvolvimento. Somos seres plenos quando temos acesso à informação e ao conhecimento. E educação sexual tem que sair da escuridão medieval e entrar nas luzes do Renascimento, tornando-se parte integrante de todo o nosso processo de aprendizagem.

Maria Inês dos Reis Magalhães Rodrigues, nº 20,10ºC

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