quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Professores que não morrem

O Dr. Sampaio
A estatura de uma Escola mede-se particularmente pela altura do valor científico -pedagógico e humano do seu corpo docente. Ora, “fama est” que a Escola Secundária Almeida Garrett cedo se impôs como espaço de ensino competente, de equilibrada exigência, e muito atento aos duros desafios da grande vida.
Pese embora o seu relativamente curto percurso, por ela passaram professores de indiscutível gabarito na docência e, alguns deles, são hoje destacados nomes nas artes plásticas e na literatura: romance e poesia. Interessante será que, em futuros espaços do nosso Jornal, se trate com alguma demora da obra desses professores - artistas.
Desta feita, cabe-me reunir um breve punhado de recordações de um professor que honrou a Escola: o Dr. José António Coelho Sampaio, tão cedo retirado ao nosso convívio.
Num tempo em que enxameiam entre nós tantos “Rabinos” que, esmurrando as abas dos seus chapéus contra o muro das lamentações, choram fracassos e tibiezas, é salutar que surjam fortes e objectivas referências humanas que incitem ao trabalho corajoso e à audácia saudável. E, nesta circunstância, invocamos, como exemplo a seguir, o Dr. Sampaio.
Oriundo de uma família numerosa da Beira, de modestos recursos económicos, subiu com coragem e esforço uma trilha íngreme que foi da instrução primária à licenciatura em Filologia – Românica, na Universidade de Coimbra.
Em jeito de aparte, afigura-se-nos justo referir a sua breve passagem pelo Seminário, uma escola que incutia nos seus alunos hábitos de disciplina e de trabalho que tornava quase fácil a continuação dos estudos liceais e universitários a quem não sentia o “chamamento evangélico”. Que o digam a Faculdade de Direito e a de Letras.
O percurso universitário do Dr. Sampaio foi interrompido pelo serviço militar, em Moçambique. Cumpriu-o, sem alguma vez invocar “os escrúpulos de consciência” que tanto jeito davam a quem era alérgico…ao cheiro da pólvora.
O tempo longo e doloroso do serviço militar, que tantos jovens universitários desmotivou, nada pôde contra a determinação do Sampaio. Voltou à Faculdade de Letras, aproveitando os curtos períodos de licença, para terminar, e com brilho, a sua licenciatura.
A minha admiração e amizade pelo Dr. Sampaio começaram no estágio, no Liceu D. Manuel II (hoje Rodrigues de Freitas, até que haja outra revolução…).
O cuidado na elaboração dos planos, sempre observados à rigorosa lupa dos metodólogos – Dr. Costa Marques e Dr. Adriano Teixeira, as suas aulas dinâmicas, vivas, alegres, parecendo incrivelmente fáceis, eram para todo o grupo (sete estagiários) modelos de pedagogia a seguir. Depois, já na Escola Almeida Garrett, o professor efectivo, Dr. Sampaio, foi o colega próximo de todos, sempre actualizado, assíduo, exigente, humano, que fez, com naturalidade, de cada elemento da família da Escola companheiros de caminho.
Quem teve por dever de ofício servir a Escola, na segunda metade da década de 1970, teve largo ensejo de entender “de visu et de auditu” o “Elogio da Loucura”, post Erasmo. Por mais de uma vez, pudemos testemunhar a intervenção decidida do Dr. Sampaio, junto de grupos ideologicamente extremados, com a sua palavra sensata, pertinente, apaziguadora. Com o Dr. Sampaio o diálogo era possível, porque era geneticamente democrata e, como Miguel Torga, não tinha certezas, tinha brumas.
São assim os homens superiores e inteligentes.
No seu Curriculum Vitae, conta-se ainda o cargo de metodólogo de francês. Recordo algumas dúvidas que nos punha quanto, por exemplo, às regências preposicionais, em francês, às vezes, tão bizarras. Recorríamos então à “compétence” do Dr. Agostinho Gomes (pai), dono de um sólido saber francês, adquirido nas suas andanças por leitorados gauleses.
Na sua rica carreira profissional, inscreve-se um efémero, mas saboroso episódio: o da Inspecção. Aposto que o Dr. Sampaio já o referiu, a rir, a Garrett que, volta e meia, lhe enche o ouvido com o seu enorme “Tratado da Educação”, ainda hoje de algum interesse. Uma vez, o Dr. Sampaio confidenciou-me a sua disposição para aceitar o cargo de Inspector. Conhecendo bem o professor que ele era, profetizei, à maneira de metáfora: caro amigo, as tuas asas arrebatam-te para voos altos, não para rasar mares de papeladas. Neste caso, era fácil ser profeta. O Dr. Sampaio, passado breve tempo, regressou ao Ensino, onde fazia muita falta com o seu lema que lhe morava na alma e que era (referindo-se aos alunos) “ o que importa é levá-los a gostar”. E a prova de que conseguia levar os alunos a gostar (a interessar-se) pelo que faziam está na edição manuscrita, ilustrada, de “Os Lusíadas”. Todos sabemos que o poema épico de Camões foi para muitas gerações um quebra-cabeças, e, não raras vezes, responsável por muitos RR. Ora o Dr. Sampaio soube despertar o gosto pela leitura do poema épico nos alunos de uma turma, a ponto de os levar com carinho e trabalho e arte a copiá-los, dando corpo a uma edição única, que se pode ver na Biblioteca da Escola.
Neste desfiar de recordações, adianto mais uma: a sua passagem pelo Centro Recreativo de Mafamude (Gaia), como Director. Os seus dotes de animador comunitário, já largamente espraiados na Escola inteira, subiram ao cume do brilho, quando comunicou com um vasto público de todas as condições sociais. Na nossa passagem pelo Coral do Centro, tivemos ocasião de escutar a opinião de muitos associados que, espontaneamente, referiam o seu natural modo de conviver, de ouvir e dar pareceres.
Disse alguém da velha Roma que “Já que não nos é dado viver por longo tempo, façamos algo que fique a atestar termos vivido”.
O Dr. Sampaio viveu pouco, mas nesse pouco legou-nos o que é tudo para a Escola portuguesa: profissionalismo, dedicação, empenhamento e o invejável modo de comunicar. Mereceu, assim, o breve tempo que os deuses lhe concederam.
Nós, os professores da Escola Almeida Garrett, mandamos daqui um forte abraço ao Dr. Sampaio que, por sua vez, nos recomendará ao nosso patrono ALMEIDA GARRETT.

Prof. ABEL MORAIS COUTO

2 comentários:

Anónimo disse...

Caríssimos Senhores Professores Fascinantes

Descobrir este meu querido tio aqui,
nestas páginas de memória, onde a memória se perpetua. Que emoção.
Uma homenagem que honra toda a família Sampaio.

Abraço grato

Paula M. Sampaio F. Viotti de Carvalho

Anónimo disse...

Aos jornalistas e leitores do Jornal da Escola Almeida Garrett,

reencontrar este olhar generoso sobre o Homem singular que foi José António Sampaio, meu tio, é ter um encontro com aquele sorriso luminoso que nos dava tantas certezas de que o mundo era descoberta permanente, fosse nos poemas ditos de corpo inteiro, fosse nos trabalhos dos alunos que, orgulhoso, exibia à família.
Homem que se dava todo à vida e gozava os segredos das palavras como se de amores proibidos se tratasse. Que perseguia o rigor e a integridade em todos os seus actos, mas pontuava de amizade larga todos aqueles ao encontro de quem a vida o lançava. Era uma vaga, uma onda de alegria, uma voz de crença na maravilha da juventude e no sucesso destas gentes que somos, aqui, no Portugal dos seus poetas e escritores tão amados.
Prestar-lhe esta homenagem é de grande nobreza, como nobre era o seu coração.
Quiz Deus ou a vida que tivesse tantos filhos quantos os seus amados sobrinhos, jovens vizinhos e, num canto especial do seu coração que cintilava ao referir-se-lhes, todos os seus amados alunos...
Deixou-nos, a todos - familiares e amigos, colegas e transeuntes da sua breve e plena passagem - mais ricos e confiantes.
Quando ria, toda natureza florescia e vibrava, porque cantava as gargalhadas sonoramente, com a franqueza dos puros.
Bem hajam pelo in memoriam.

Mafalda de Sampaio Borges e Família reconhecida